04 maio 2014

Folhas - Parte Final





E então seu olhar mudou uma última vez. De volta ao redemoinho das folhas dançantes da calçada na noite fria de outono, aquele olhar derradeiro não era mais meramente contemplativo. Não era um olhar de sorrisos. Desfolheava-lhe a vida.
O olhar desvelador. Percebia, enfim, todas aquelas folhas como páginas e fragmentos da história que escreveu. Tinha-as à frente de suas memórias, para dispor-lhes na ordem em que desejasse. E no entanto, era-lhe fatídica a sequência das aflições e dos sorrisos.
Imaginou aqueles pedaços bagunçados de vida se re-arranjando numa outra ordem. Noutros compêndios. Noutro destino. Um onde talvez a senhora sentada ali no banco da praça acabasse por ser sua companheira, vigiando-o de longe, como por tantos anos. Onde a praça pudesse não ser aquela, mas outra sabe-se-lá-onde. Onde talvez tivesse tido netos - e filhos, antes deles. Onde as lágrimas pingariam outros sais, sob outros sóis, por entre outras bocas, e consoladas por outros dedos que não os seus. E talvez daqueles olhos azuis tivesse-as sorvido mais vezes. Tanto as salgadas quando as doces.
O olhar de então criava. Artístico, num re-arranjo nem tão inédito assim. Era um amigo de há muito visitando novamente aquele rosto. Mas houveram escolhas. “Destinos?” - uns diriam. Caminhos. Vida. Foi assim a dele, até ali.
E era esse olhar particular sobre sua vida tudo o que carregara dela própria até então. Era, de tudo o que viveu, aquilo que conseguiu trazer consigo. 
Tudo o que possuía era o seu próprio olhar. E os olhos dela.







— João Otero - 1-mai-2014 —